Supermercado da Solidão


        [...]
Com muito esforço abriu o espaço e se projetou ofegante para fora da turba. Caminhava apressado e sem se voltar para trás. Ele se sabia seguro. Era capaz de ouvi-los. Avistou o corredor que levava ao banheiro e conseguiu entrar.
Os azulejos brancos reluziam. Bernardo molhou o rosto com água fria. Pelo espelho, de um ângulo que o reflexo de outro espelho dividia o enquadramento, dois homens, lado a lado, parados junto aos mictórios, tensos. Um outro cruzou velozmente seu campo de visão no espelho, mas não saiu para seção dos lavabos, permaneceu lá, talvez ao lado de um outro homem.
 Bernardo passou indiferente pelo vão que levava aos mictórios e seguiu para os reservados. Lá, fechou-se na cabine e tentou recuperar um pouco das forças perdidas. Sentado, o corpo rompeu em dor. Levantou as barras da perna da calça até a altura dos joelhos e afroxou os cadarços dos sapatos. Respirava fundo, esperando que o ar purificasse o sangue das veias. O perfume barato de desinfetante invadiu suas narinas. Passou as mãos na pedra fria e cinza das paredes. Na porta, genitais e telefones celulares. Abaixo de um dos desenhos a inscrição Jesus te ama. Em volta do centro onde se propagavam esses amores estava tudo limpo. Ou fora apagado poucos instantes antes, sendo aquelas inscrições o testemunho recente do cotidiano humano numa outra espécie de caverna. Sexo e religião, pensou ele. E comércio, claro. Os arqueólogos teriam pouco trabalho para desvendar a alma do homem no século XX. Sua arte declinara para um rupestre de esferográfica e banheiro. Acabaram-se as batalhas e a magia do fogo. Mesmo Picasso havia entendido isso e voltado ao primitivo.  E depois de Picasso as forças pictóricas foram reduzidas à cinza. Bernardo tirou uma caneta do bolso e desenhou algumas cifras junto aos genitais, os números de telefones e as frases exclamativas.  A boca estava seca, as pernas inchadas e algo dentro dele doía. Mas ele sorriu e achou que de uma maneira geral aquela porta compunha um belo quadro. Havia unidade.
Sentia-se melhor quando deixou o banheiro. E pôde aproveitar para beber água no bebedouro do corredor. [...].

TRINDADE, Lima. Supermercado da Solidão. LGE Editora, 2005, p. 84-85.



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