Coisas domésticas
Espero que ninguém nos
ouça: queria muito falar com você. Já escrevi várias vezes na porta o meu
número de telefone e o meu ramal. Vejo esses números e me lembro daquela
crônica que saiu, no mês passado, na revista Nova: “por que ela não telefonou?”
Vejo esses desenhos e fico imaginando o seu corpo: intangível, retocável com um
simples crayon. Desenho maquiáveis, maquiavélicos contornos com o meu batom “Pecado-Capital-169”.
É da Max-Factor. Guardou a marca? As universitárias usam muito, Sublinho,
grafito o seu corpo. É a minha inscrição, o sinal do meu percurso. “Estou
querendo chupar a sua bucetinha, passar a língua bem de levinho. Não há nada
melhor e você não quer deixar. Buceta é a coisa mais gostosa, não é?” Por que
você não me responde e me deixa, assim, solitária neste espaço íntimo onde me
masturbo e invento esse pequeno drama, essa estorinha de amor em porta de
banheiro? “Teresinha, eu te amo! Se você soubesse, olhava diferente”. Por que
você resiste e não escuta as minhas palavras que correm para todo lado, que
provocam, intrigam e também agridem: “Você é sapatão ou está me chamando disso?
Se você é está ótimo, nós nos daremos bem, mas se não, sei lá. Mulher, não! Tenho
alergia desse bicho! Basta eu!” Aqui, neste lugar solitário, onde defeco e me
refugio, me sinto em casa. É tão simples estar em casa? Usar o vaso, lavar as
mãos, olhar no espelho, me pentear e relaxar? Aqui me sinto como Querelle
quando passava diante dos banheiros públicos, rabiscava os seus escritos e
pensava com melancolia no seu cotidiano: “6h de trabalho, 2h de transporte. 2h
de alimentação, 1h de higiene pessoal. 6h de sono. Total 19h. 5h para cuidar da
vida (casa, filhos, vizinhos, cachorro). E pra gente, não sobra nada?” Preciso
sair daqui. Me sinto em casa, mas a minha casa é outra e me espera com aquelas
24h de que falei antes: 24h gastas e somadas meticulosamente. O tempo desliza pelos
meus dedos, pelo meu lápis, pela minha caneta. Mordo as unhas, o meu lápis e
chupo a tinta da minha caneta bic. Lápis, dedo, caneta. Símbolos fálicos,
fálicos? Preciso parar de analisar os meus escritos, já é terrorismo demais. Estudante
do 6º período de Sociologia, casada com três filhos saudáveis e bonitos,
funcionária há sete anos de IBGE, precisava mesmo era de uma babá. Batem na
porta, preciso ir embora. Rapidamente, maculo mais alguns riscos e rabiscos
sobre o branco da porta. Vou pra casa, elástica, elétrica, pensando em coisas
domésticas, imaginando o seu corpo, intangível, retocável com um simples
crayon.
COUY,
Venus Brasileira. Coisas domésticas. In: ______. Mural dos nomes impróprios: ensaio sobre grafito de banheiro. Rio
de Janeiro: 7 Letras, 2005, p. 89-90.